sexta-feira, 20 de maio de 2016

As Vidas Pelo Caminho das Rochas


Foto por: Noilton Pereira

A Geologia é uma das ciências mais espetaculares por promover viagens e aproximação entre pessoas de realidades muito distintas. Tendo crescido em Belo Horizonte, não imaginava os cantos do Brasil que eu poderia conhecer por meio de trabalhos de campo e as pessoas que residem em cada um deles.

E não somente. Ao ser forçado à abstração, tendo de trabalhar com escalas que vão do microscópico ao continental, o geólogo desenvolve uma habilidade notável de colocar as coisas em perspectiva. Torna-se um pouco mais fácil esticar o pescoço e fazer sua vista alcançar para além de sua rua, seu bairro, sua cidade, seu estado.

No Maranhão, pude conhecer famílias que vivem isoladas entre dunas de areia de dezenas de metros de altura. Enquanto as dunas avançam e mudam sua configuração de acordo com o regime de ventos, pequenos oásis são formados a partir de rios que vencem as areias e permitem que aquelas famílias sobrevivam. Crianças que ali vivem cuidam da casa, buscam água no poço e preparam o almoço como qualquer adulto.

No extremo norte da Bahia, passei alguns dias em uma comunidade de origem quilombola, cujos avanços registrados nos últimos anos transformaram a vida dos que ali residem. A televisão pública, instalada na praça, chegou para eles no século XXI. As recentes melhoras de pavimentação, saneamento básico e distribuição de energia elétrica fizeram com que sentissem que pela primeira vez não estavam abandonados por Deus. Curiosamente, a comunidade abriga a maior caverna do Brasil e segunda maior do hemisfério sul.

No interior de Pernambuco, conheci Seu Agripino, taxista e pequeno agricultor. Entusiasmado com meu interesse sobre sua cidade e as mudanças recentes pelas quais ela vem passando, ele me levou para fazer uma espécie de tour gratuito, montando um paralelo entre sua memória e aquilo que víamos pela janela do carro. Seus olhos marejados não escondiam o orgulho de poder crescer a primeira geração de sua família que não passaria fome enfim.

E assim é o estudo das rochas. O fato de o instrumento de trabalho principal da ciência não envolver formas vivas não significa muito, já que no caminho para se chegar até as rochas existem muitas pessoas. Se voltar para suas histórias e realidades é o mínimo que se pode fazer enquanto cientista das ciências da Terra.

Basta abrir os olhos e atentar os ouvidos.

sábado, 30 de maio de 2015

África: Lição de Geologia e Desumanidade




A África está sendo desmembrada. Há séculos. Há milhões de anos.

Homens exploram o continente como se raspa um prato amiúde. Com facas afiadas e negócios escusos. Casos como os de Virunga e Queensway fazem com que não nos esqueçamos de que a colonização é mais recente do que nunca. O imperialismo está no seu auge. Fronteiras se perdem em meio à impérios multinacionais, os quais, injustamente, ganham a alcunha de empresas. São senhores escravagistas sem nacionalidade. Sedentos tratores desembestados. Sangrar o continente em busca da pedra preciosa ou do ouro negro é prática corriqueira.

As maiores forças da Terra abrem fissuras no continente às quais damos o nome de riftes. Nestes, se formam rios caudalosos e lagos que trazem algo de esperança - estão ali o Lago Victoria,  Tanganyika e Malawi. A Terra parece ter mais complacência com o continente mais antigo do mundo do que os próprios homens. Se hoje ela faz com que se separem três blocos, pode ser que o processo cesse à certa altura e não mais evolua. À estrutura formada, os geólogos dão o nome de rifte abortado ou aulacógeno. Mas esta evolução depende de uma dinâmica complexa que envolve massas continentais de forças inimagináveis e velocidades imperceptíveis para o olho humano. A esta dinâmica se somam processos no interior do manto rochoso terrestre que pouco conhecemos.

Os homens mais poderosos da Terra abrem feridas no continente às quais damos o nome de desigualdade. Os dois países africanos que produzem mais petróleo – Angola e Nigéria – figuram entre os dez países com maior mortalidade infantil no mundo. Um continente com tanta riqueza em seu subsolo parece não reter em si o desenvolvimento trazido a partir destes bens. O continente tem um terço do urânio mundial, metade do ouro, dois terços dos diamantes e 10% das reservas estimadas de petróleo. Tem, também, uma localização privilegiada com acesso aos oceanos Atlântico e Índico. Por outro lado, os índices de analfabetismo, fome, epidemias, miséria e a quantidade de conflitos armados são alarmantes. O contraste entre estes dois cenários é absurdo.

A abertura dos braços de rios e lagoas no leste africano fizeram com que se formassem áreas rebaixadas em relação ao entorno, ou seja, regiões que passaram a receber grande aporte de sedimentos carreados pelo vento, água e gravidade. Por ser uma área de concentração de sedimentos, trata-se também de um ótimo sítio para acúmulo de ossos e matéria orgânica que viriam a constituir fósseis nos tempos mais recentes. E foi justamente ali que encontramos Lucy, nossa ancestral de 3,2 milhões de anos de idade – considerada um dos hominídeos mais antigos do mundo. E é tão curioso que tenham dado este nome por conta da música que tocava no acampamento aonde ocorreu a descoberta: Lucy in the Sky with Diamonds, uma canção cujo título remete ao próprio continente africano e sua história.

Enquanto a Terra tenta criar novas placas tectônicas na África, o Homem tenta criar novas formas de explorá-la. Se os geólogos e outros cientistas fazem esforços imensos para conhecer o interior do planeta Terra, parece que pessoas fazem esforço mínimo para conhecer seu próprio interior.

A África está sendo disjungida. Dilacerada. Diariamente.